Sobre a divisão do Pará
Apesar de brasileiro recém-integrado à saga amazônica, sinto-me no direito e preparado para tecer comentários sobre uma questão tão polêmica, merecedora de amplo e cuidadoso debate nacional. Ainda criança, lembro-me ter ouvido carimbó ou curimbó (como preferem os paraenses do vale tapajônico) que ecoava da vitrola na bodega de mineiro Manoel Leite. Cresci vendo levas de capixabas, baianos e mineiros deixarem a região norte espírito-santense em direção à Rondônia, Maranhão, Pará e Mato Grosso.
Por isso e por sempre ter me posicionado em processos divisórios feitos à moda medieval, há alguns meses venho comentando com amigos professores acerca das implicações geopolíticas e sociais da divisão do Estado do Pará. Neste texto, nem será preciso incomodar o mestre Milton Santos para tal. Apesar de morador recente desse Estado, não engrosso as fileiras nas quais defendem a simples divisão do bolo fiscal simplesmente com a intenção de melhorar as condições de vida da população local. Na minha terra dizem: “Isso é estória p'ra boi dormir!” Não será preciso entrar no mérito das riquezas naturais existentes aqui – província cuja biodiversidade abrange seus minérios, fauna, flora, além de seu recurso aquífero e potencial hidrelétrico – para compreender que os discursos prós e contras à pretensa divisão estão superados. Salta aos olhos que esse pretenso Estado seria sem dúvida imensamente rico.
O problema é atávico, remontam questões territoriais, desde o Tratado de Tordesilhas (1494), cujos os interesses políticos, sociais e econômicos de oligarquias colonizadoras sempre prevaleceram. Não vamos tampar o sol com a peneira, mesmo porque estamos sob a linha do equador, seria impossível.
Todavia, vamos nos deter um pouco mais sobre algumas questões por trás dos fatos: Por que os democratas baianos não apoiaram a aprovação para a divisão de seu extremo oeste e fizeram campanha contra? Lembro-me que por ocasião dos debates em torno da criação do Estado Franciscano – separando da Bahia a região oeste que, dentre outros municípios, abriga os de Barreiras e de LEM (Luiz Eduardo Magalhães) –, figuras ilustres do partido Democrata, do ex-governador Paulo Souto, posicionaram-se contra. Por que a recente discussão separatista no Brasil concentra-se em regiões sob influência da Expansão do agronegócio, em especial sojeira, sob influência política do tucanato? Vejam o mapa desse país, sobretudo olhem para os resultados da última eleição e começarão a compreender. É preciso lembrar aos separatistas e defensores que não é preciso ser especialista em análise de conjuntura política para perceber a ingerência ao bel-prazer de bancadas empresariais em decisões tão importantes e estratégicas para a nação. Lembrem-se, nada contra a livre decisão democrática e autodeterminação dos povos, mas é preciso que a patuleia não seja manipulada.
Os processos políticos que dividiram ou pretendem dividir territorialmente o Brasil, como no vale tapajônico, pantanal, triângulo mineiro, extremos da Bahia e do Piauí são complexos e merecem ser debatidos por todos nós de forma ampliada, além da mera divisão tributária, apesar de importante, está superada e é o que menos conta no momento. Tanto os argumentos técnicos do IPEA quanto dos tributaristas locais estão superados. A depender dos rumos políticos e econômicos, das decisões estratégicas dos futuros gestores, ambos não passarão de retórica tecnocrata. Para quaisquer dúvidas, olhem para os casos mais recentes de divisão territorial em Tocantins e Mato Grosso. Houveram avanços, claro! Porém, para que hajam Sinopes e Rios verdes e outras ilhas de prosperidade, o atual modelo desenvolvimentista não se preocupa com suas terríveis consequências, comprometedoras de futuros. Por exemplo, por que a população insiste na construção de moradias que ocupam todo o seu terreno, não permitindo a circulação de ar e entrada de luz? Para compensar, investem em poderosos aparelhos de ar-condicionado que não só consomem somas significativas de energia, como também comprometem o orçamento familiar. Não basta só dividir e concentrar riquezas, precisamos repensar e superar o modelo em prática.
Não será fácil, sei. Argumentam a melhoria da condição de vida nesses Estados nascentes, como o PIB, indicadores sociais etc. Tudo melhorou! É uma maravilha só! Principalmente em tempos como esse. Pode ser, mas novamente pergunto: melhorou p'ra quem? Para os “da terra” ou para uma parcela ínfima dos novos colonizadores? Para a patuleia em geral ou para certas elites e oligarquias locais? Não teríamos alternativa ao avanço do agronegócio, cuja base é a expansão sojeira? Seremos o celeiro eterno da humanidade? Será que haverá tanta terra p'ra alimentar tantos famintos ao redor do mundo?
Decisões dessa magnitude precisam levar em conta questões culturais. Mesmo reconhecendo o isolamento histórico que remonta à época da vinda portuguesa, com a criação dos primeiros núcleos de colonizadores nessa região – quando a Coroa, numa empreitada épica, transferiu portugueses católicos sob ameaça moura da costa da Guiné para Belém e depois os enviou para as margens do rio Amazonas e Tapajós, originando núcleos populacionais que mais tarde fariam surgir cidades como Almeirim, Santarém, Óbidos, Alenquer, Aveiro, dentre outras – não podemos aceitar o discurso que a divisão atual visa romper esse isolamento geográfico e cultural. Penso haver outras formas de superá-los, estamos no século XXI. Além disso, os laços criados se manterão por séculos na alma tapajônida. Mesmo com sentimentos ufanistas, esses laços são indissociáveis mesmo que dividam como dizem os da patuléia: “o parazão paidégua”. Tal divisão, caso ocorra, não conseguirá romper e negar a origem indígena, cabocla, que sofreu e sofre influências externas como as miscigenações, novos hábitos e costumes dos que vieram e ainda virão de fora ou de dentro.
Os defensores da divisão sem reflexão acerca das questões complexas insistirão com o modelo exploratório medieval. Se não o repensarmos, não tenham dúvidas, esse modelo de desenvolvimento se traduzirá em serrarias, jazidas exauridas, soja e concentração de riquezas. Nós já assistimos esse filme na vida real. Caso tenham dúvidas, detenham-se na história recente dos Estados do Tocantins e do Mato Grosso.
Vejam! Nada contra o empreendedorismo e o desenvolvimento. Reconheço a importância do agronegócio para o Brasil, mas não esqueçamos de seus estragos, muitos deles irreparáveis. Porém, penso ser possível construir outros modelos de desenvolvimento, e estes não necessariamente passam por divisões territoriais e políticas. Sei também dos desafios impostos pela imensidão territorial do paraense. Nada contra os legítimos anseios do povo, espero até que em caso de aprovação via plebiscito, todos de direito beneficiem-se das benesses da riqueza exaltada. Benesses que sejam sustentáveis, menos agressores e concentradoras de renda, mais adequados a essa região e ao nosso tempo. Caso consigamos avançar no debate sobre o modelo de desenvolvimento, superando a tecnocracia tributária, tenho certeza, isso sob a decisão “quase sobrerana” dos cidadãos aqui residentes, criar-se-ia efetivamente um Estado muito rico.
Reflitam sobre.
O autor é blogueiro esporádico e Professor no CFI – Centro de formação Interdisciplinar da UFOPA
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